Ainda hoje acho que deu prá notar a minha cara de absoluto espanto, sentado ali à mesa do Presidente da República, pela primeira vez na vida.
Caicó?!
O meu chefe e Ministro do Planejamento, eu era seu secretário executivo, me olhava entre inquisitorial e aflito.
Caicó?!, ecoei. Fica no Rio Grande do Norte?
O Presidente Itamar Franco não se mexeu. À nossa frente, dois enormes calhamaços com o OGU, o Orçamento Geral da União, com seus bilhões de reais, os juros da dívida pública, a Previdência, a saúde e a educação do Brasil. Em resumo, tudo que o governo iria arrecadar e gastar pais afora em uma ano! E o Presidente nos pergunta justo sobre um posto de saúde... em Caicó? Se ao menos fosse um hospital, pensei aflito.
Grave, o Presidente tornou a cobrar. “Sim, Sr. Secretário, Caicó, no Rio Grande do Norte, eu prometi ao povo de lá que faria o posto de saúde e ele tem que estar ai”.
Caicó teve o seu posto de Saúde, claro. E eu comecei a conhecer a atenção do Presidente aos detalhes, que compunha a sua personalidade, formal, reservada e dada a gestos ora largos, ora de brava e intransigente defesa dos seus pontos de vista.
Ao partir, aquele senhor de cabelos brancos e voz pausada, ao lado de suas preocupações miúdas, deixa um amplo legado ao Brasil, sendo três as suas principais contribuições.
Primeiro, ter liderado a transição entre o impeachment de Collor, com todo o seu potencial de ruptura democrática, e entregue o pais ao seu sucessor, sem se desviar ou ceder a pressões e tentações.
A segunda e decisiva contribuição, o Plano Real, coordenado pelo então ministro da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso, devolveu a esperança aos brasileiros e serviu de base para a reorganização progressiva do Estado, da moeda, finanças, salários e investimentos.
É a partir do Real que o pais pode se relançar na redução das nossa agudas desigualdades, via programas sociais de massa.
Por fim, a exemplaridade no exercício da política, subordinada a ética e orientada ao bem comum. Isso num Brasil aonde política e políticos, na percepção média, mal se distanciam de marginais.
Dotado de singular firmeza, Itamar às vezes sobrepunha sua personalidade à racionalidade política, como no caso da “guerra” entre Minas e Brasília, detonada pela questão da renegociação das dívidas do estado, quando chegou a distribuir tanques e a PM em torno do Palácio da Liberdade, sede do governo.
Em contrapartida, teve a compreensão de ceder a continuidade das privatizações, às quais era contrário, porém necessárias ao saneamento fiscal das contas nacionais e ao combate à inflação. Ou ainda, após difíceis negociações com a equipe econômica, em não repetir erros do Plano Cruzado, como o congelamento de preços.
Anos atrás, tive um pequeno entrevero com o ex-presidente, que enviou Henrique Hargreaves, seu ex-chefe da Casa Civil, para sondar minha disposição quanto a sua filiação ao PPS, partido pelo qual disputou e se elegeu senador por Minas Gerais.
Respondi-lhe que meu afeto e gratidão permaneciam intactos e que seria um prazer e uma honra tê-lo como companheiro de partido.
Eleito senador, Itamar Franco logo despontou como um dos líderes da oposição, pela combatividade e firmeza de posições, características pessoais que o acompanharam por toda vida pública.
Por tudo que foi e fez, ao ex-presidente cabia receber as merecidas honras da nação nas casas que honrou com sua dignidade e retidão, o Congresso Nacional e o Palácio do Planalto. Ele, entretanto, seguirá direto de São Paulo, aonde faleceu, para sua Juiz de Fora e, de lá, para Belo Horizonte.
Esse périplo final, exclusivamente mineiro, talvez traduza a mágoa de quem se deu tanto e, ao seu juízo, não teve o devido reconhecimento dos seus pares e da opinião pública.
É pacífico, porém, que o presidente Itamar Franco será lembrado com carinho por todos e com o respeito devido aos que, na vida pública, serviram o pais, sem dele servirem-se jamais.
*Raul Jungmann é presidente estadual do PPS e ex-deputado federal.
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